O preço psíquico da dopamina fácil: riscos do uso excessivo do celular para a saúde mental
Matheus Vieira da Cunha
10/10/20254 min read
Vivemos um tempo em que o celular deixou de ser um simples instrumento de comunicação para se tornar uma extensão do corpo e, mais profundamente, uma espécie de prótese psíquica. Ele está presente ao acordar, ao adormecer, nas pausas de trabalho e até mesmo nos raros momentos de silêncio. A aparente neutralidade tecnológica oculta um fenômeno clínico e cultural de grandes proporções: a transformação dos modos de presença no mundo, de atenção e de vínculo. O uso excessivo do celular, sobretudo quando se apoia na busca constante por estímulos fáceis, acarreta riscos significativos para a saúde mental — riscos que não são apenas individuais, mas estruturais e coletivos.
A lógica da dopamina instantânea
Uma das engrenagens mais potentes do funcionamento das plataformas digitais é a oferta constante de recompensas rápidas, fragmentadas e previsíveis. Cada notificação, curtida ou nova informação aciona circuitos dopaminérgicos cerebrais, os mesmos envolvidos na experiência do prazer e na motivação. Ao contrário das experiências complexas da vida real — que demandam esforço, espera e elaboração psíquica — o celular fornece microdoses de satisfação imediata, sem exigir atividade corporal ou simbólica significativa.
Essa lógica da “dopamina fácil” tem efeitos diretos sobre a capacidade de tolerar o tédio, de sustentar processos longos de concentração e de elaborar experiências afetivas. O sujeito contemporâneo, constantemente estimulado, passa a vivenciar um empobrecimento da capacidade de estar consigo mesmo e de suportar a ausência momentânea de estímulos. Como apontou Winnicott, a capacidade para estar só é um marco do amadurecimento emocional; quando essa capacidade é fragilizada, o vazio é rapidamente preenchido por objetos externos, como a tela do celular.
A suspensão da função e do gesto
Outra consequência relevante do uso excessivo do celular é o progressivo esvaziamento das funções motoras e da atividade física espontânea. O corpo, muitas vezes relegado à posição passiva, cede espaço a uma mente excitada por estímulos visuais e auditivos incessantes. Caminhar, brincar, conversar frente a frente ou simplesmente deixar o pensamento vagar — atividades essenciais para o desenvolvimento psíquico e emocional — são substituídas por movimentos repetitivos de deslizar e tocar na tela.
Esse fenômeno pode ser compreendido como uma suspensão simbólica da função. O sujeito deixa de exercer atos criativos ou corporais, entregando-se à passividade de uma experiência pronta, já mediada e organizada por algoritmos. O gesto, no sentido mais humano do termo — que articula corpo, desejo e mundo — é neutralizado. A consequência clínica não é apenas o sedentarismo físico, mas também uma espécie de “sedentarismo psíquico”, no qual a elaboração, a imaginação e a simbolização cedem espaço a uma recepção passiva de conteúdos.
Dependência afetiva e o celular como objeto transicional invertido
O celular também ocupa, para muitos sujeitos, um lugar afetivo privilegiado. Ele não é apenas um meio; é um companheiro constante, uma fonte de validação, de companhia e de autoafirmação. Na ausência de outros, é a tela que acolhe, que distrai, que faz companhia no silêncio. Podemos compreender essa relação a partir da ideia de objeto transicional formulada por Winnicott: trata-se de um objeto que, na infância, serve de ponte entre o mundo interno e o externo, ajudando o bebê a lidar com a ausência materna e a construir uma realidade compartilhada.
No entanto, no caso do celular, essa função parece inverter-se. Em vez de ajudar a elaborar ausências, ele as evita. Em vez de sustentar a construção de vínculos, ele oferece simulações de presença. O sujeito estabelece uma dependência afetiva ao aparelho: verifica compulsivamente mensagens, sente ansiedade na ausência do sinal, experimenta irritação ou vazio quando está “offline”. A relação, que deveria ser instrumental, torna-se de ordem libidinal — isto é, investida de afetos profundos e estruturantes.
Consequências psíquicas e sociais
Os efeitos desse uso excessivo não se restringem ao campo individual. Observa-se um aumento de queixas relacionadas à dificuldade de concentração, ansiedade, sensação de vazio, irritabilidade e isolamento. No âmbito social, nota-se a redução de interações presenciais significativas e um empobrecimento do espaço público enquanto lugar de encontro e troca simbólica.
Do ponto de vista clínico, é possível notar sujeitos cuja capacidade de fantasiar está embotada, cujo tempo interno foi acelerado de forma artificial, e cuja presença está constantemente dividida entre o aqui-agora e a tela. A experiência humana, que requer pausas, intervalos e densidade, é substituída por um fluxo contínuo de fragmentos.
Conclusão: recuperar o intervalo
Repensar o uso do celular não implica demonizar a tecnologia, mas recuperar a dimensão do intervalo — o espaço-tempo em que nada acontece e, justamente por isso, algo novo pode surgir. É nesse espaço de suspensão que se dá a criatividade, a elaboração e a verdadeira presença no mundo.
Limitar o uso do celular, criar zonas de silêncio digital, cultivar atividades físicas, relacionais e criativas, são formas de reintroduzir no cotidiano a experiência de estar verdadeiramente vivo, e não apenas conectado. A psique humana não foi feita para operar em fluxo contínuo de estímulos; ela precisa de pausas, gestos, corpos e vínculos reais. Em tempos de dopamina fácil, talvez o maior ato de resistência seja reaprender a esperar, a suportar e a desejar.
Cordialmente,
Matheus Vieira da Cunha
Psicólogo Clínico CRP 16/7659
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Psicólogo Matheus Vieira da Cunha
CRP 16/7659 - Mestre em Psicologia
